Eles eram bárbaros sanguinários. Matavam velhos e crianças e escravizavam por dinheiro. Mas sem os bandeirantes o país terminaria em São Paulo.
Ilha do Bananal, atual Estado de Tocantins, ano de 1750. Um grupo de homens descalços, sujos e famintos se aproxima de uma aldeia carajá. Cautelosamente, convencem os índios a permitir que acampem na vizinhança. Aos poucos, ganham a amizade dos anfitriões. Um belo dia, entretanto, mostram a que vieram. De surpresa, durante a madrugada, invadem a aldeia.Os índios são acordados pelo barulho de tiros de mosquetão e correntes arrastando. Muitos tombam antes de perceber a traição. Mulheres e crianças gritam e são silenciadas a golpes de machete. Os sobreviventes do massacre, feridos e acorrentados, iniciam, sob chicote, uma marcha de 1 500 quilômetros até a vila de São Paulo - como escravos.
Foi assim, à força, que os bandeirantes conquistaram o Brasil. Caçadores profissionais de gente, chegaram a lugares com os quais Pedro Álvares Cabral nem sonharia. Nas andanças em busca de ouro e índios para apresar, descobriram o Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e Tocantins. Percorreram e atacaram povoações espanholas nos atuais Peru, Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. Espalharam o terror entre os povos do interior do continente e expandiram as fronteiras da América portuguesa. Uma história brutal. Mas, se não fossem eles, você talvez falasse espanhol hoje. Os maiores trunfos desse avanço eram o conhecimento do sertão e uma disposição que intrigava até os inimigos. O padre jesuíta espanhol Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652), por exemplo, escreveu que os paulistas, a pé e descalços, andavam mais de 2000 quilômetros por vales e montes “como se passeassem nas ruas de Madri”. A coragem deles também era extraordinária. Além de terras desconhecidas, sempre enfrentaram temíveis grupos indígenas dispostos à briga. E nem sempre se davam bem. Muitos morreram de fome, em terras estéreis, ou crivados de flechas.
Os grandes perdedores, no entanto, foram os índios. Nas tribos visitadas pelos bandeirantes não ficava palha sobre palha. Muitos territórios viraram desertos humanos, ocupados, depois, por súditos portugueses. Por isso, hoje quase não se vêem índios em São Paulo, Minas Gerais, na Bahia e no Nordeste em geral. No aniversário de 500 anos do Descobrimento, a SUPER traz um retrato desses homens e da aventura que desenhou, com violência, um novo mapa do Brasil.
De costas para o mar, de olho no sertão
De todos os núcleos de colonização portuguesa no Brasil do século XVI, São Paulo era o único que não ficava no litoral e não dependia do comércio com a Europa. A sobrevivência da vila, nos seus primórdios, era garantida pela esperta política de alianças do cacique tupiniquim Tibiriçá, que havia casado sua filha com o português João Ramalho. Seus guerreiros conseguiam cativos de outras tribos para as lavouras dos primeiros colonos.
Ao perceber que não conseguiria chegar pelo sul do Brasil às cobiçadas minas de ouro e prata do Peru, a Coroa portuguesa abandonou os paulistas à própria sorte. Aos bandeirantes restou a exploração do ouro vermelho, os índios. Assim começou o “negócio do sertão”, como era chamado o ofício da caça de gente, base da economia paulista até o século XVIII. A mão-de-obra escrava foi a base do desenvolvimento de prósperas plantações de trigo no século XVI ao XVII, vizinhas à cidade. Áreas rurais, como Cotia e Santana de Parnaíba, abasteciam São Vicente e Rio de Janeiro, os centros produtores de açúcar, a maior mercadoria da colônia.
“Até há pouco pensava-se que os bandeirantes capturavam índios para exportar para as plantações de cana no litoral”, disse à SUPER o historiador John Monteiro, da Universidade Estadual de Campinas. “Mas hoje sabemos que a maioria dos cativos ia para as lavouras dos próprios bandeirantes”, ressalta. Enquanto houve índios, o interior de São Paulo foi o celeiro do Brasil colonial.
Se o campo era rico, o mesmo não se pode dizer da precária vila, que em 1601 tinha apenas 1500 habitantes. Em nada se comparava à solidez dos núcleos canavieiros do Nordeste, como Olinda ou Salvador. São Paulo era umas poucas casas de pau-a-pique espalhadas no meio do mato, entre ruas sujas e barrentas. Um visitante sofreria para achar um endereço. Primeiro porque as ruas não tinham nome. Depois, não conseguiria, mesmo, entender os paulistas: quase todos eles eram índios ou mestiços e falavam a “língua geral”, um dialeto tupi. Aliás, o nome completo da vila era São Paulo de Piratinininga, que quer dizer “peixe seco” no idioma indígena. O português era de uso quase exclusivo da minoria branca. Segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda, 83% da população paulista no século XVII era indígena. O bilingüismo só acabaria de vez em 1759, quanto a língua geral foi proibida pelas autoridades portuguesas, por decreto. Em São Paulo, rico era quem tinha talheres - só dez famílias possuíam - e camas. Isso mesmo: camas. Em 1620, um representante do rei de Portugal em visita à cidade simplesmente não tinha onde dormir. A solução foi confiscar a única cama decente da cidade, que pertencia a um cidadão chamado Gonçalo Pires.
Por cima do Tratado de Tordesilhas
A cidade de Guaíra é hoje um discreto centro produtor de soja com 30 000 habitantes, 680 quilômetros a oeste de Curitiba, no Paraná. Em 1600, no entanto, tinha importância estratégica. Chamava-se Ciudad Real del Guayra e era capital da província de Guayrá, subordinada a Assunção, capital do Vice-Reinado do Prata espanhol. O Guayrá abrangia 80% do atual território paranaense.
Localizada dentro das terras atribuídas à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas - que em 1492 dividira os territórios espanhóis e portugueses na América - a província abrigava vilas espanholas e doze missões jesuíticas, que congregavam grande parte dos índios guaranis da região. Era uma verdadeira mina de escravos para os paulistas, já que os guaranis eram um povo agrícola que falava um idioma semelhante à lingua geral de São Paulo. Só que os padres e fazendeiros espanhóis impediam o acesso dos índios aos colonos portugueses. Por isso, os moradores de São Paulo defendiam abertamente uma invasão militar da região. Mas Portugal insistia em manter uma política de boa vizinhança com os espanhóis e respeitar a fronteira. Foram os próprios castelhanos que cutucaram a onça primeiro e vieram apresar índios perto de São Paulo. Era a desculpa que os bandeirantes esperavam. Em 1619, um exército de 2000 índios e 900 mestiços invadiu aldeias e missões no Guairá, capturando guaranis. Hordas foram enviadas acorrentadas para São Paulo. Era o começo do fim do Tratado de Tordesilhas. Nos anos seguintes o território das missões sofreu na mão dos bandeirantes. Logo as expedições militares que partiam de São Paulo passaram a atacar também as missões de Tape, conquistando a maior parte das terras que séculos depois formaria o atual Estado do Rio Grande do Sul, além das missões do Itatim, hoje no sul do Mato Grosso do Sul. Segundo o historiador John Monteiro, até 1641 os paulistas destruíram entre onze e catorze missões jesuíticas espanholas. Cada uma tinha entre 3000 e 5000 índios, o que daria entre 33000 e 55000 índios escravizados.
Nesse apresamento, os bandeirantes tiveram um auxiliar poderoso: as epidemias contraídas pelos índios dos espanhóis, uma vez aldeados nas missões. “Muitas vitórias dos bandeirantes no Guayrá podem ter ocorrido porque os guaranis já estavam enfraquecidos pelas doenças”, ressalta o arqueólogo Francisco Noelli, da Universidade Federal de Maringá, no Paraná. O avanço dos paulistas sobre o território espanhol só diminuiu depois da derrota para os guaranis na Batalha de M’bororé, em 1641 (veja acima). Depois daquela data, a caça ao índio passou a ser praticada por expedições menores. Uma vez encerrado o apresamento fácil dos bons escravos guaranis nas missões, os bandeirantes mudaram de rumo: passaram a buscar, no noroeste de São Paulo, índios mais selvagens, que não plantavam e não falavam tupi, os bravos jês. Viraram-se para o Centro-Oeste.
A corrida em busca de ouro
Sem os escravos guaranis, as plantações de São Paulo entraram em declínio. Os recursos passaram a ser canalizados para a busca de ouro e pedras preciosas, como esmeraldas, mais ao norte. As bandeiras se esticaram. Em 1648, Antonio Raposo Tavares (1598-1659) viajou 10000 quilômetros a pé e de canoa, de São Paulo ao Paraguai, e de lá até Mato Grosso, Amazonas e Pará. Andou quatro anos.
Ao mesmo tempo, as expedições de apresamento de índios tornaram-se menores, multiplicando-se as armações, as entradas familiares que reuniam uns vinte homens. Eram modestas, mas eficientes. Uma das tribos sistematicamente caçadas e escravizadas a partir de 1670, a dos goyás, acabou dando o nome ao Estado onde vivia: Goiás.
Em 1692 a persistência expansionista foi recompensada com a descoberta de jazidas em Ouro Preto, no atual Estado de Minas Gerais. Tão logo a notícia do ouro chegou a Portugal, a Coroa distribuiu os direitos de exploração a lusos e comerciantes do Rio de Janeiro, passando a perna nos bandeirantes. Para piorar, contrabandistas da Bahia também se meteram por ali. Os paulistas reagiram. Em 1709, armaram-se em bandos de índios e mamelucos e partiram para cima dos forasteiros, chamados de emboabas (“galinhas de bota”, em tupi). A Guerra dos Emboabas acabou em 1711 com a expulsão dos paulistas. Com eles fora, em 1720, criou-se a capitania de Minas Gerais. Vila Rica de Ouro Preto virou capital.
Aos bandeirates restou continuar procurando ouro. Alguns, como Bartolomeu Bueno da Silva (1672-1740), o Anhangüera, partiram atrás da mítica Serra dos Martírios, cujos montes - dizia-se - eram feitos de ouro puro. Depois de três anos vagando pelo cerrado, Anhangüera achou metal precioso nas terras dos goyás e fundou, em 1725, a cidade de Goiás. As descobertas atraíam bandeirantes como ímã, mas não só eles. Em 1719, quando a notícia da descoberta das minas de Cuiabá chegou a São Paulo, seus habitantes migraram em massa em direção às lavras do distante arraial. Surgiram, assim, as monções - as expedições fluviais. Mas chegar até o eldorado não era fácil. O extermínio dos guaranis-itatim do Mato Grosso, décadas antes, havia provocado um efeito colateral: a migração dos paiaguás para o Rio Paraguai, bem na rota das monções. Os paiaguás formavam frotas para assaltar os barcos dos paulistas. Para complicar, eles se aliaram a outra poderosa tribo, a dos guaicurus, que usavam cavalos roubados dos espanhóis. O poderio dessa aliança indígena foi suficiente para levar os castelhanos, em 1740, a fazer um tratado de paz com eles, algo inédito na América até então. Em 1727, depois do massacre de uma monção, os portugueses declararam guerra aos índios. Os conflitos terminariam em 1782, com um armistício. Os guaicurus, que atualmente se chamam kadiwéus e moram no Mato Grosso do Sul, até hoje se orgulham disso.
Tropa de choque no Nordeste
O bispo de Olinda, dom Francisco de Lima, ficou horrorizado quando recebeu, em 1694, a visita do paulista Domingos Jorge Velho. Diria depois que “era o maior selvagem com quem já havia topado” e que foi preciso um intérprete, pois o brutamontes só falava tupi. O bandeirante havia sido contratado pelo governador de Pernambuco para acabar com o pesadelo dos senhores de engenho nordestinos: o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, oeste de Alagoas. Palmares era um conjunto de aldeias fortificadas que abrigava escravos fugidos - mas também índios, muçulmanos, brancos marginalizados e judeus. Desde 1654, seus guerreiros resistiam aos holandeses e às expedições militares mandadas contra eles. Mas não resistiriam aos índios e mestiços guerreiros do “selvagem” Jorge Velho - que, aliás, falava e escrevia em português. O bispo exagerou no desdém.
Como Domingos Jorge Velho, outros bandeirantes embarcaram para o Nordeste entre 1657 e 1720 atendendo a chamados de administradores regionais. O objetivo era combater grupos indígenas que não aceitavam a ocupação de suas terras pelos criadores de gado. As guerras contra os índios eram consideradas “justas” e os cativos eram declarados escravos. Criou-se assim o “sertanismo de contrato”, com bandeirantes convertidos em mercenários, recebendo os índios que capturassem como pagamento. O resultado foi a eliminação de vários grupos nordestinos, como os anayos, os maracás e os janduins. Muitos paulistas receberam terras e viraram criadores de gado na região do Rio São Francisco.
Com o fim da expansão mineradora e das guerras contra os índios no Nordeste, o ímpeto bandeirante arrefeceu. Em São Paulo, o declínio demográfico dos escravos e a dificuldade crescente de repor a mão-de-obra das fazendas do interior acabou pondo a economia paulista em xeque. Na primeira metade do século XVIII, sem índios e sem poder comprar escravos africanos, que custavam o dobro, as lavouras do interior paulista se estagnaram. Com isso, o “negócio do sertão” perdeu o motor. Os bandeirantes, que se lançaram como gafanhotos sobre o sertão por 200 anos, haviam descoberto um novo país. Mas acabaram tão pobres quanto antes.
Algo mais
A origem do termo "bandeira" tem várias explicações. A mais aceita afirma que as grandes expedições que assaltaram as missões jesuíticas no sul do país, no século XVII, eram formadas por diversas companhias, identificadas, cada uma, por bandeiras. Com o tempo, esse passou a ser o nome genérico das incursões de apresamento de índios dos paulistas.
Tocaia na madrugada
Para atacar aldeias indígenas, os bandeirantes organizavam bandos armados.
1. O chefe da expedição era um sertanista branco experiente, em geral aparentado com os demais expedicionários. Muitas vezes era o próprio empresário. Cabia a ele conseguir financiamento e reunir seus escravos, agregados e parentes para a incursão.
2. Os filhos costumavam se engajar nas expedições desde os 13 ou 14 anos. Ao se casar, recebiam armas, correntes e índios emprestados de pais e parentes, para montar sua própria expedição e, assim, arrebanhar seu primeiro patrimônio - escravos índios. As bandeiras eram um negócio familiar. Uma expedição pequena, uma "armação", reunia uns vinte homens.
3. Índios, geralmente escravos guaranis, eram a infantaria. Andavam nus ou vestidos com trapos. Serviam como guias, batedores, caçadores e cozinheiros. Sem eles não havia bandeira.
4. O arco e flecha era uma das armas mais usadas, tanto por brancos como por índios. Suas vantagens eram a leveza, o silêncio e a velocidade. Um índio disparava até sete flechas no mesmo intervalo de tempo em que se carregava de munição um arcabuz.
5. O alfanje, uma espécie de sabre curto, era a arma branca mais comum. Servia para combates corpo a corpo.
6. O gibão, também chamado de coura, era feito de couro de anta, mais grosso, para resistir a flechadas.
7. O mosquetão era um trambolho que precisava ser carregado por dois. De tão pesado, precisava ser apoiado num tripé. Media 1,75 metro de comprimento.
8. A gualteira era uma espécie de chapéu de pele de anta. Protegia a cabeça como um capacete.
A aldeia urbana
Conheça São Paulo em 1601.
Um arraial entre rios Um dos limites urbanos era o Córrego Anhangabaú, hoje centro da cidade. Um muro de taipa protegia a cidade de ataques de tribos inimigas. Do outro lado do rio era tudo mata. A riqueza estava no campo. Perto da vila estendiam-se fazendas de trigo, que era exportado para o litoral, e plantações de marmelo. O doce, muitas vezes vendido com o peso adulterado, deu origem ao termo “marmelada”.
As ruas não tinham placas. Os endereços eram indicados com referências do tipo “ao lado da cadeia”, ou “vizinho ao padre”. Havia cerca de 150 casas. As ruas eram desertas. A população passava a maior parte do tempo em fazendas ou no sertão, atrás de índios. Fundado em 1554 pelos jesuítas, o Colégio de São Paulo foi o primeiro edifício da cidade.
Galpão, doce galpão
A grossura das paredes de taipa dava às casas o aspecto de fortaleza. Por dentro, eram galpões com depósito, oficina e cozinha. Não havia banheiro. As necessidades eram feitas no quintal. A mobília se resumia a tamboretes e baús. Não existiam quartos nem camas, mas havia redes em todos os cantos da casa. Como nas aldeias indígenas, cada morador tinha uma fogueira ao lado da sua rede. São Paulo tinha muita floresta em volta e o clima era mais frio. Armas havia em abundância: escopetas, espingardas, bacamartes, arcos, flechas, espadas e alfanjes. E correntes para amarrar escravos.
Gente estranha
As mulheres paulistas eram conhecidas como "tapadas", por andarem sempre cobertas por panos escuros, da cabeça aos pés. A maioria falava mal o português.
Escravas índias, a maior parte guaranis, auxiliavam nas tarefas domésticas e na roça. Era perigoso uma mulher andar sozinha. Bandos de índios armados, a mando de famílias rivais, atracavam-se em pleno centro da vila.
Os poucos brancos tinham aspecto ameaçador. Andavam armados de punhais e arco e flecha.
A Batalha de M’bororé
Derrota freou expansão escravagista
A maior derrota bandeirante aconteceu em 1641 no Rio M’bororé, afluente do Rio Uruguai. Um batalhão de guaranis e guaranis-itatim da Missão de São Francisco Xavier, hoje na província de Misiones, Argentina, enfrentou e venceu uma frota de 130 canoas, com 350 bandeirantes e 1200 índios. Os paulistas foram surpreendidos por 70 canoas armadas com arcabuzes e arcos. A luta durou seis dias. Foi o fim das expedições paulistas às missões espanholas.
Um barco com a imagem de S. Francisco Xavier e um canhão vinham à frente das canoas.
Os guaranis das missões usavam armas de fogo. Nesta batalha, contaram com 57 arcabuzes.
Um padre comandava o ataque
Os paulistas que escaparam da morte no rio foram massacrados pelos guaranis-itatim na margem.
Século XVII: a invasão do sul
Durante trinta anos, os bandeirantes saquearam as missões espanholas.
Missões do Itatim 1630-1650
Missões do Guayrá 1619-1641
Missões do Tape 1630-1640
Se virando à paulista
Comer numa bandeira já era, por si, uma aventura. A primeira refeição do dia podia ser um macaco moqueado com uma pasta amarela e mofada de mandioca-brava, a chamada farinha de guerra.O grude era preparado meses antes, em São Paulo, e resistia a sol, chuva e baratas. Haja estômago. Mas isso só se você fosse índio. Para os brancos o rancho era um pouco melhor: farinha de milho, feijão e toucinho, o famoso “virado à paulista”, servido frio, mesmo. A dieta era complementada com a coleta de frutos, já que não dava para levar muita comida na bagagem nem das roças plantadas no caminho.“Muitas expedições eram marcadas para épocas que coincidissem com a colheita de frutas silvestres, como o pinhão”, contou à SUPER a historiadora Maria da Glória Kok, da Universidade de São Paulo. Quando a fome apertava e não havia caça nem pesca, entravam no cardápio até larvas, formigas, cobras, sapos e lagartos. E às vezes nem isso havia. Em 1722, quarenta membros da expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, morreram de inanição em uma chapada goiana.
Caçada humana - As táticas de guerra dos paulistas.
1. Antes da partida das bandeiras, escravos iam na frente e plantavam roças de milho e mandioca em pontos estratégicos - muitas viraram cidades, como a atual Batatais (SP). A viagem era marcada em função da colheita.
2. As expedições menores, as armações, saíam em fila de madrugada. Os homens andavam até 10 quilômetros por dia. Não tinham volta marcada: o importante era aprisionar quantos índios pudessem.
3. Achada a aldeia a ser atacada, os paulistas amolavam facas, machetes e alfanjes. Bagagem, doentes e feridos eram deixados no acampamento.
4. Os ataques exploravam a surpresa. Para inibir resistências valia aterrorizar, matando crianças e queimando gente viva. Depois era feita a carga, com o maior número possível de índios amarrados e acorrentados.
5. Se o ataque fosse bem-sucedido, as “peças”, como se chamavam os cativos, eram remetidas para São Paulo, para serem vendidas. Parte dos homens continuava atrás de mais índios para escravizar.
Século XVIII: a conquista do Centro-Oeste
Os bandeirantes desbravaram Minas, Mato Grosso, Goiás e guerrearam os índios do Nordeste.
Guerras no Nordeste (1690-1760)
Rota das monções (1710-1780)
Expedições de apresamento e mineração Descoberta de ouro
Cidades fantasmas
O arqueólogo Paulo Zanettini ficou espantado quando trombou com um muro de pedra de 300 metros de extensão no meio do mato, na Serra da Borda, atual município de Pontes e Lacerda, no oeste de Mato Grosso. “Achei que estivesse em uma ruína inca”, lembra-se. Mas o que Zanettini encontrou foi um capítulo esquecido da história das bandeiras. Aquele enorme muro pertencia a um arraial de mineração de ouro do século XVIII. Em 1988, Zanettini identificou vestígios de três cidades de pedra na região: São Vicente, Vila Bela e São Francisco Xavier da Chapada. Na última, há restos de taipa, indício da presença bandeirante - já que essa técnica de construção era marca registrada dos paulistas. As cidades fantasmas foram provavelmente construídas por exploradores que, para fugir do recolhimento de impostos nas minas de Cuiabá, migraram para o oeste a partir de 1720. Arraiais semelhantes foram identificados também no alto Rio Tocantins, em Goiás. “O tamanho deles dá uma idéia do que esses homens fizeram na busca do ouro”, disse o arqueólogo à SUPER. Sua ganância era tanta que o mineral em todos esses arraiais acabou em menos de vinte anos. As cidades foram engolidas pelo mato.
Quem perdeu o Brasil
Nações indígenas foram desalojadas ou extintas pelas bandeiras. Veja as terras invadidas e as migrações forçadas de alguns grupos.
Panará
Antes chamados caiapós do sul, saíram de Minas e foram parar no norte de Mato Grosso. São 161 indivíduos.
Xerente
São parte do grupo akwe que se dividiu durante os ataques dos bandeirantes a Goiás. Moram em Tocantins e são 1500 indivíduos.
Carajá
Quase dizimados durante o século XVIII, são hoje um grupo de 2000 indivíduos.
Goyá
A tribo que batiza o Estado de Goiás foi completamente extinta (não restou sequer uma imagem). Ninguém sabe como eram, que língua falavam nem como viviam.
Guarani
Foram as primeiras vítimas das bandeiras. Segundo o historiador paraguaio Bartolomeu Meliá, eram mais de 800 000 em 1600. Hoje são 30000 em todo o país.
Caiapó
Antigos habitantes do Tocantins, emigraram para o Pará e Mato Grosso. Só fariam contato pacífico com os brancos a partir de 1950. São 4 000 indivíduos hoje.
Xavante
Originalmente parte do grupo akwe, fugiram de Goiás para o Araguaia e depois para o Mato Grosso, onde estão até hoje. São 7 100.
Guaicuru
Terror da região do Pantanal e Chaco paraguaio de 1720 a 1780, fizeram acordos de paz com os portugueses e os espanhóis. Hoje há 1 200 deles, que se chamam kadiwéus e moram no Mato Grosso do Sul.
Holocausto brasileiro
O Brasil é uma invenção recente. Quando Cabral chegou, havia inúmeras nações indígenas, divididas entre si em pequenas tribos, que viviam em guerra umas com as outras. A conquista se fez aos pedacinhos. Para transformar tanta terra em um país só, foi feita uma vasta limpeza étnica. Estima-se que em 1500 havia 5 milhões de índios no Brasil. Hoje eles são 300 000 (0,2% da população) e ocupam 12% do território brasileiro. O lingüista Aryon Dall’Igna Rodrigues, da Universidade de Brasília, calcula que existiam 1 200 línguas. Hoje há 180. No Centro-Sul e Nordeste do país, o genocídio foi executado, na maior parte, pelos bandeirantes. Eles extingiram vários grupos, como os goyás, os janduins, os guarulhos, os araés, os guaranis-itatim e outros cujo nome nem se sabe. Mas sua intervenção nem sempre era direta. Como num jogo de bilhar, os grupos que fugiam dos ataques paulistas invadiam as terras dos outros, iniciando novos ataques e revides sangrentos. Ao migrar, forçavam outros grupos a se deslocar, até novo território. Foi o caso dos akwes, de Goiás, que a partir de 1720 se dividiram em dois. Parte deles fugiu para a região do Araguaia, território tradicional dos carajás. O conflito empurrou os migrantes mais para o oeste, até o atual cerrado mato-grossense, onde estão até hoje. São os atuais xavantes. Os que ficaram em Goiás hoje estão em Tocantins. São os xerentes.
Os bandeirantes souberam manipular os ódios intertribais. Poupavam tribos com as quais mantinham comércio, como os guaianás, e compravam escravos de outras, como os caiapós do sul. Estes últimos passaram de fornecedores a mercadoria, e fugiram de seu antigo território, a região do Triângulo Mineiro. Foram parar no norte de Mato Grosso, onde só seriam encontrados de novo em 1967. Descobriu-se, só então, que a tribo se autodenominava panará.
Ocas de branco
Quem vê um bandeirante numa pintura oficial imagina que eles moravam em vastas casas senhoriais. Nada disso. As residências paulistas eram verdadeiras ocas com paredes de taipa. “Havia uma mistura das influências européia e indígena”, disse à SUPER a arqueóloga Margarida Andreatta, da Universidade de Mogi das Cruzes. Escavando uma casa de 1650 no hoje movimentado bairro do Tatuapé (“caminho do tatu”, em tupi), na zona leste da capital paulista, Andreatta descobriu fragmentos de cerâmica indígena misturados à louça portuguesa. Achou também um polvarinho, um recipiente de madeira usado para guardar pólvora. Como as malocas familiares tupis, as casas tinham redes espalhadas por todos os cantos. Também foi encontrado carvão de vários restos de fogueira, o que sugere que cada habitante tinha um fogo-de-chão ao lado da rede, para cozinhar e se aquecer nos dias frios.
Texto de André Toral e Giuliana Bastos publicado na revista "Super Interessante" edição 151 de abril de 2000. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa
Foi assim, à força, que os bandeirantes conquistaram o Brasil. Caçadores profissionais de gente, chegaram a lugares com os quais Pedro Álvares Cabral nem sonharia. Nas andanças em busca de ouro e índios para apresar, descobriram o Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e Tocantins. Percorreram e atacaram povoações espanholas nos atuais Peru, Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. Espalharam o terror entre os povos do interior do continente e expandiram as fronteiras da América portuguesa. Uma história brutal. Mas, se não fossem eles, você talvez falasse espanhol hoje. Os maiores trunfos desse avanço eram o conhecimento do sertão e uma disposição que intrigava até os inimigos. O padre jesuíta espanhol Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652), por exemplo, escreveu que os paulistas, a pé e descalços, andavam mais de 2000 quilômetros por vales e montes “como se passeassem nas ruas de Madri”. A coragem deles também era extraordinária. Além de terras desconhecidas, sempre enfrentaram temíveis grupos indígenas dispostos à briga. E nem sempre se davam bem. Muitos morreram de fome, em terras estéreis, ou crivados de flechas.
Os grandes perdedores, no entanto, foram os índios. Nas tribos visitadas pelos bandeirantes não ficava palha sobre palha. Muitos territórios viraram desertos humanos, ocupados, depois, por súditos portugueses. Por isso, hoje quase não se vêem índios em São Paulo, Minas Gerais, na Bahia e no Nordeste em geral. No aniversário de 500 anos do Descobrimento, a SUPER traz um retrato desses homens e da aventura que desenhou, com violência, um novo mapa do Brasil.
De costas para o mar, de olho no sertão
De todos os núcleos de colonização portuguesa no Brasil do século XVI, São Paulo era o único que não ficava no litoral e não dependia do comércio com a Europa. A sobrevivência da vila, nos seus primórdios, era garantida pela esperta política de alianças do cacique tupiniquim Tibiriçá, que havia casado sua filha com o português João Ramalho. Seus guerreiros conseguiam cativos de outras tribos para as lavouras dos primeiros colonos.
Ao perceber que não conseguiria chegar pelo sul do Brasil às cobiçadas minas de ouro e prata do Peru, a Coroa portuguesa abandonou os paulistas à própria sorte. Aos bandeirantes restou a exploração do ouro vermelho, os índios. Assim começou o “negócio do sertão”, como era chamado o ofício da caça de gente, base da economia paulista até o século XVIII. A mão-de-obra escrava foi a base do desenvolvimento de prósperas plantações de trigo no século XVI ao XVII, vizinhas à cidade. Áreas rurais, como Cotia e Santana de Parnaíba, abasteciam São Vicente e Rio de Janeiro, os centros produtores de açúcar, a maior mercadoria da colônia.
“Até há pouco pensava-se que os bandeirantes capturavam índios para exportar para as plantações de cana no litoral”, disse à SUPER o historiador John Monteiro, da Universidade Estadual de Campinas. “Mas hoje sabemos que a maioria dos cativos ia para as lavouras dos próprios bandeirantes”, ressalta. Enquanto houve índios, o interior de São Paulo foi o celeiro do Brasil colonial.
Se o campo era rico, o mesmo não se pode dizer da precária vila, que em 1601 tinha apenas 1500 habitantes. Em nada se comparava à solidez dos núcleos canavieiros do Nordeste, como Olinda ou Salvador. São Paulo era umas poucas casas de pau-a-pique espalhadas no meio do mato, entre ruas sujas e barrentas. Um visitante sofreria para achar um endereço. Primeiro porque as ruas não tinham nome. Depois, não conseguiria, mesmo, entender os paulistas: quase todos eles eram índios ou mestiços e falavam a “língua geral”, um dialeto tupi. Aliás, o nome completo da vila era São Paulo de Piratinininga, que quer dizer “peixe seco” no idioma indígena. O português era de uso quase exclusivo da minoria branca. Segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda, 83% da população paulista no século XVII era indígena. O bilingüismo só acabaria de vez em 1759, quanto a língua geral foi proibida pelas autoridades portuguesas, por decreto. Em São Paulo, rico era quem tinha talheres - só dez famílias possuíam - e camas. Isso mesmo: camas. Em 1620, um representante do rei de Portugal em visita à cidade simplesmente não tinha onde dormir. A solução foi confiscar a única cama decente da cidade, que pertencia a um cidadão chamado Gonçalo Pires.
Por cima do Tratado de Tordesilhas
A cidade de Guaíra é hoje um discreto centro produtor de soja com 30 000 habitantes, 680 quilômetros a oeste de Curitiba, no Paraná. Em 1600, no entanto, tinha importância estratégica. Chamava-se Ciudad Real del Guayra e era capital da província de Guayrá, subordinada a Assunção, capital do Vice-Reinado do Prata espanhol. O Guayrá abrangia 80% do atual território paranaense.
Localizada dentro das terras atribuídas à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas - que em 1492 dividira os territórios espanhóis e portugueses na América - a província abrigava vilas espanholas e doze missões jesuíticas, que congregavam grande parte dos índios guaranis da região. Era uma verdadeira mina de escravos para os paulistas, já que os guaranis eram um povo agrícola que falava um idioma semelhante à lingua geral de São Paulo. Só que os padres e fazendeiros espanhóis impediam o acesso dos índios aos colonos portugueses. Por isso, os moradores de São Paulo defendiam abertamente uma invasão militar da região. Mas Portugal insistia em manter uma política de boa vizinhança com os espanhóis e respeitar a fronteira. Foram os próprios castelhanos que cutucaram a onça primeiro e vieram apresar índios perto de São Paulo. Era a desculpa que os bandeirantes esperavam. Em 1619, um exército de 2000 índios e 900 mestiços invadiu aldeias e missões no Guairá, capturando guaranis. Hordas foram enviadas acorrentadas para São Paulo. Era o começo do fim do Tratado de Tordesilhas. Nos anos seguintes o território das missões sofreu na mão dos bandeirantes. Logo as expedições militares que partiam de São Paulo passaram a atacar também as missões de Tape, conquistando a maior parte das terras que séculos depois formaria o atual Estado do Rio Grande do Sul, além das missões do Itatim, hoje no sul do Mato Grosso do Sul. Segundo o historiador John Monteiro, até 1641 os paulistas destruíram entre onze e catorze missões jesuíticas espanholas. Cada uma tinha entre 3000 e 5000 índios, o que daria entre 33000 e 55000 índios escravizados.
Nesse apresamento, os bandeirantes tiveram um auxiliar poderoso: as epidemias contraídas pelos índios dos espanhóis, uma vez aldeados nas missões. “Muitas vitórias dos bandeirantes no Guayrá podem ter ocorrido porque os guaranis já estavam enfraquecidos pelas doenças”, ressalta o arqueólogo Francisco Noelli, da Universidade Federal de Maringá, no Paraná. O avanço dos paulistas sobre o território espanhol só diminuiu depois da derrota para os guaranis na Batalha de M’bororé, em 1641 (veja acima). Depois daquela data, a caça ao índio passou a ser praticada por expedições menores. Uma vez encerrado o apresamento fácil dos bons escravos guaranis nas missões, os bandeirantes mudaram de rumo: passaram a buscar, no noroeste de São Paulo, índios mais selvagens, que não plantavam e não falavam tupi, os bravos jês. Viraram-se para o Centro-Oeste.
A corrida em busca de ouro
Sem os escravos guaranis, as plantações de São Paulo entraram em declínio. Os recursos passaram a ser canalizados para a busca de ouro e pedras preciosas, como esmeraldas, mais ao norte. As bandeiras se esticaram. Em 1648, Antonio Raposo Tavares (1598-1659) viajou 10000 quilômetros a pé e de canoa, de São Paulo ao Paraguai, e de lá até Mato Grosso, Amazonas e Pará. Andou quatro anos.
Ao mesmo tempo, as expedições de apresamento de índios tornaram-se menores, multiplicando-se as armações, as entradas familiares que reuniam uns vinte homens. Eram modestas, mas eficientes. Uma das tribos sistematicamente caçadas e escravizadas a partir de 1670, a dos goyás, acabou dando o nome ao Estado onde vivia: Goiás.
Em 1692 a persistência expansionista foi recompensada com a descoberta de jazidas em Ouro Preto, no atual Estado de Minas Gerais. Tão logo a notícia do ouro chegou a Portugal, a Coroa distribuiu os direitos de exploração a lusos e comerciantes do Rio de Janeiro, passando a perna nos bandeirantes. Para piorar, contrabandistas da Bahia também se meteram por ali. Os paulistas reagiram. Em 1709, armaram-se em bandos de índios e mamelucos e partiram para cima dos forasteiros, chamados de emboabas (“galinhas de bota”, em tupi). A Guerra dos Emboabas acabou em 1711 com a expulsão dos paulistas. Com eles fora, em 1720, criou-se a capitania de Minas Gerais. Vila Rica de Ouro Preto virou capital.
Aos bandeirates restou continuar procurando ouro. Alguns, como Bartolomeu Bueno da Silva (1672-1740), o Anhangüera, partiram atrás da mítica Serra dos Martírios, cujos montes - dizia-se - eram feitos de ouro puro. Depois de três anos vagando pelo cerrado, Anhangüera achou metal precioso nas terras dos goyás e fundou, em 1725, a cidade de Goiás. As descobertas atraíam bandeirantes como ímã, mas não só eles. Em 1719, quando a notícia da descoberta das minas de Cuiabá chegou a São Paulo, seus habitantes migraram em massa em direção às lavras do distante arraial. Surgiram, assim, as monções - as expedições fluviais. Mas chegar até o eldorado não era fácil. O extermínio dos guaranis-itatim do Mato Grosso, décadas antes, havia provocado um efeito colateral: a migração dos paiaguás para o Rio Paraguai, bem na rota das monções. Os paiaguás formavam frotas para assaltar os barcos dos paulistas. Para complicar, eles se aliaram a outra poderosa tribo, a dos guaicurus, que usavam cavalos roubados dos espanhóis. O poderio dessa aliança indígena foi suficiente para levar os castelhanos, em 1740, a fazer um tratado de paz com eles, algo inédito na América até então. Em 1727, depois do massacre de uma monção, os portugueses declararam guerra aos índios. Os conflitos terminariam em 1782, com um armistício. Os guaicurus, que atualmente se chamam kadiwéus e moram no Mato Grosso do Sul, até hoje se orgulham disso.
Tropa de choque no Nordeste
O bispo de Olinda, dom Francisco de Lima, ficou horrorizado quando recebeu, em 1694, a visita do paulista Domingos Jorge Velho. Diria depois que “era o maior selvagem com quem já havia topado” e que foi preciso um intérprete, pois o brutamontes só falava tupi. O bandeirante havia sido contratado pelo governador de Pernambuco para acabar com o pesadelo dos senhores de engenho nordestinos: o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, oeste de Alagoas. Palmares era um conjunto de aldeias fortificadas que abrigava escravos fugidos - mas também índios, muçulmanos, brancos marginalizados e judeus. Desde 1654, seus guerreiros resistiam aos holandeses e às expedições militares mandadas contra eles. Mas não resistiriam aos índios e mestiços guerreiros do “selvagem” Jorge Velho - que, aliás, falava e escrevia em português. O bispo exagerou no desdém.
Como Domingos Jorge Velho, outros bandeirantes embarcaram para o Nordeste entre 1657 e 1720 atendendo a chamados de administradores regionais. O objetivo era combater grupos indígenas que não aceitavam a ocupação de suas terras pelos criadores de gado. As guerras contra os índios eram consideradas “justas” e os cativos eram declarados escravos. Criou-se assim o “sertanismo de contrato”, com bandeirantes convertidos em mercenários, recebendo os índios que capturassem como pagamento. O resultado foi a eliminação de vários grupos nordestinos, como os anayos, os maracás e os janduins. Muitos paulistas receberam terras e viraram criadores de gado na região do Rio São Francisco.
Com o fim da expansão mineradora e das guerras contra os índios no Nordeste, o ímpeto bandeirante arrefeceu. Em São Paulo, o declínio demográfico dos escravos e a dificuldade crescente de repor a mão-de-obra das fazendas do interior acabou pondo a economia paulista em xeque. Na primeira metade do século XVIII, sem índios e sem poder comprar escravos africanos, que custavam o dobro, as lavouras do interior paulista se estagnaram. Com isso, o “negócio do sertão” perdeu o motor. Os bandeirantes, que se lançaram como gafanhotos sobre o sertão por 200 anos, haviam descoberto um novo país. Mas acabaram tão pobres quanto antes.
Algo mais
A origem do termo "bandeira" tem várias explicações. A mais aceita afirma que as grandes expedições que assaltaram as missões jesuíticas no sul do país, no século XVII, eram formadas por diversas companhias, identificadas, cada uma, por bandeiras. Com o tempo, esse passou a ser o nome genérico das incursões de apresamento de índios dos paulistas.
Tocaia na madrugada
Para atacar aldeias indígenas, os bandeirantes organizavam bandos armados.
1. O chefe da expedição era um sertanista branco experiente, em geral aparentado com os demais expedicionários. Muitas vezes era o próprio empresário. Cabia a ele conseguir financiamento e reunir seus escravos, agregados e parentes para a incursão.
2. Os filhos costumavam se engajar nas expedições desde os 13 ou 14 anos. Ao se casar, recebiam armas, correntes e índios emprestados de pais e parentes, para montar sua própria expedição e, assim, arrebanhar seu primeiro patrimônio - escravos índios. As bandeiras eram um negócio familiar. Uma expedição pequena, uma "armação", reunia uns vinte homens.
3. Índios, geralmente escravos guaranis, eram a infantaria. Andavam nus ou vestidos com trapos. Serviam como guias, batedores, caçadores e cozinheiros. Sem eles não havia bandeira.
4. O arco e flecha era uma das armas mais usadas, tanto por brancos como por índios. Suas vantagens eram a leveza, o silêncio e a velocidade. Um índio disparava até sete flechas no mesmo intervalo de tempo em que se carregava de munição um arcabuz.
5. O alfanje, uma espécie de sabre curto, era a arma branca mais comum. Servia para combates corpo a corpo.
6. O gibão, também chamado de coura, era feito de couro de anta, mais grosso, para resistir a flechadas.
7. O mosquetão era um trambolho que precisava ser carregado por dois. De tão pesado, precisava ser apoiado num tripé. Media 1,75 metro de comprimento.
8. A gualteira era uma espécie de chapéu de pele de anta. Protegia a cabeça como um capacete.
A aldeia urbana
Conheça São Paulo em 1601.
Um arraial entre rios Um dos limites urbanos era o Córrego Anhangabaú, hoje centro da cidade. Um muro de taipa protegia a cidade de ataques de tribos inimigas. Do outro lado do rio era tudo mata. A riqueza estava no campo. Perto da vila estendiam-se fazendas de trigo, que era exportado para o litoral, e plantações de marmelo. O doce, muitas vezes vendido com o peso adulterado, deu origem ao termo “marmelada”.
As ruas não tinham placas. Os endereços eram indicados com referências do tipo “ao lado da cadeia”, ou “vizinho ao padre”. Havia cerca de 150 casas. As ruas eram desertas. A população passava a maior parte do tempo em fazendas ou no sertão, atrás de índios. Fundado em 1554 pelos jesuítas, o Colégio de São Paulo foi o primeiro edifício da cidade.
Galpão, doce galpão
A grossura das paredes de taipa dava às casas o aspecto de fortaleza. Por dentro, eram galpões com depósito, oficina e cozinha. Não havia banheiro. As necessidades eram feitas no quintal. A mobília se resumia a tamboretes e baús. Não existiam quartos nem camas, mas havia redes em todos os cantos da casa. Como nas aldeias indígenas, cada morador tinha uma fogueira ao lado da sua rede. São Paulo tinha muita floresta em volta e o clima era mais frio. Armas havia em abundância: escopetas, espingardas, bacamartes, arcos, flechas, espadas e alfanjes. E correntes para amarrar escravos.
Gente estranha
As mulheres paulistas eram conhecidas como "tapadas", por andarem sempre cobertas por panos escuros, da cabeça aos pés. A maioria falava mal o português.
Escravas índias, a maior parte guaranis, auxiliavam nas tarefas domésticas e na roça. Era perigoso uma mulher andar sozinha. Bandos de índios armados, a mando de famílias rivais, atracavam-se em pleno centro da vila.
Os poucos brancos tinham aspecto ameaçador. Andavam armados de punhais e arco e flecha.
A Batalha de M’bororé
Derrota freou expansão escravagista
A maior derrota bandeirante aconteceu em 1641 no Rio M’bororé, afluente do Rio Uruguai. Um batalhão de guaranis e guaranis-itatim da Missão de São Francisco Xavier, hoje na província de Misiones, Argentina, enfrentou e venceu uma frota de 130 canoas, com 350 bandeirantes e 1200 índios. Os paulistas foram surpreendidos por 70 canoas armadas com arcabuzes e arcos. A luta durou seis dias. Foi o fim das expedições paulistas às missões espanholas.
Um barco com a imagem de S. Francisco Xavier e um canhão vinham à frente das canoas.
Os guaranis das missões usavam armas de fogo. Nesta batalha, contaram com 57 arcabuzes.
Um padre comandava o ataque
Os paulistas que escaparam da morte no rio foram massacrados pelos guaranis-itatim na margem.
Século XVII: a invasão do sul
Durante trinta anos, os bandeirantes saquearam as missões espanholas.
Missões do Itatim 1630-1650
Missões do Guayrá 1619-1641
Missões do Tape 1630-1640
Se virando à paulista
Comer numa bandeira já era, por si, uma aventura. A primeira refeição do dia podia ser um macaco moqueado com uma pasta amarela e mofada de mandioca-brava, a chamada farinha de guerra.O grude era preparado meses antes, em São Paulo, e resistia a sol, chuva e baratas. Haja estômago. Mas isso só se você fosse índio. Para os brancos o rancho era um pouco melhor: farinha de milho, feijão e toucinho, o famoso “virado à paulista”, servido frio, mesmo. A dieta era complementada com a coleta de frutos, já que não dava para levar muita comida na bagagem nem das roças plantadas no caminho.“Muitas expedições eram marcadas para épocas que coincidissem com a colheita de frutas silvestres, como o pinhão”, contou à SUPER a historiadora Maria da Glória Kok, da Universidade de São Paulo. Quando a fome apertava e não havia caça nem pesca, entravam no cardápio até larvas, formigas, cobras, sapos e lagartos. E às vezes nem isso havia. Em 1722, quarenta membros da expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, morreram de inanição em uma chapada goiana.
Caçada humana - As táticas de guerra dos paulistas.
1. Antes da partida das bandeiras, escravos iam na frente e plantavam roças de milho e mandioca em pontos estratégicos - muitas viraram cidades, como a atual Batatais (SP). A viagem era marcada em função da colheita.
2. As expedições menores, as armações, saíam em fila de madrugada. Os homens andavam até 10 quilômetros por dia. Não tinham volta marcada: o importante era aprisionar quantos índios pudessem.
3. Achada a aldeia a ser atacada, os paulistas amolavam facas, machetes e alfanjes. Bagagem, doentes e feridos eram deixados no acampamento.
4. Os ataques exploravam a surpresa. Para inibir resistências valia aterrorizar, matando crianças e queimando gente viva. Depois era feita a carga, com o maior número possível de índios amarrados e acorrentados.
5. Se o ataque fosse bem-sucedido, as “peças”, como se chamavam os cativos, eram remetidas para São Paulo, para serem vendidas. Parte dos homens continuava atrás de mais índios para escravizar.
Século XVIII: a conquista do Centro-Oeste
Os bandeirantes desbravaram Minas, Mato Grosso, Goiás e guerrearam os índios do Nordeste.
Guerras no Nordeste (1690-1760)
Rota das monções (1710-1780)
Expedições de apresamento e mineração Descoberta de ouro
Cidades fantasmas
O arqueólogo Paulo Zanettini ficou espantado quando trombou com um muro de pedra de 300 metros de extensão no meio do mato, na Serra da Borda, atual município de Pontes e Lacerda, no oeste de Mato Grosso. “Achei que estivesse em uma ruína inca”, lembra-se. Mas o que Zanettini encontrou foi um capítulo esquecido da história das bandeiras. Aquele enorme muro pertencia a um arraial de mineração de ouro do século XVIII. Em 1988, Zanettini identificou vestígios de três cidades de pedra na região: São Vicente, Vila Bela e São Francisco Xavier da Chapada. Na última, há restos de taipa, indício da presença bandeirante - já que essa técnica de construção era marca registrada dos paulistas. As cidades fantasmas foram provavelmente construídas por exploradores que, para fugir do recolhimento de impostos nas minas de Cuiabá, migraram para o oeste a partir de 1720. Arraiais semelhantes foram identificados também no alto Rio Tocantins, em Goiás. “O tamanho deles dá uma idéia do que esses homens fizeram na busca do ouro”, disse o arqueólogo à SUPER. Sua ganância era tanta que o mineral em todos esses arraiais acabou em menos de vinte anos. As cidades foram engolidas pelo mato.
Quem perdeu o Brasil
Nações indígenas foram desalojadas ou extintas pelas bandeiras. Veja as terras invadidas e as migrações forçadas de alguns grupos.
Panará
Antes chamados caiapós do sul, saíram de Minas e foram parar no norte de Mato Grosso. São 161 indivíduos.
Xerente
São parte do grupo akwe que se dividiu durante os ataques dos bandeirantes a Goiás. Moram em Tocantins e são 1500 indivíduos.
Carajá
Quase dizimados durante o século XVIII, são hoje um grupo de 2000 indivíduos.
Goyá
A tribo que batiza o Estado de Goiás foi completamente extinta (não restou sequer uma imagem). Ninguém sabe como eram, que língua falavam nem como viviam.
Guarani
Foram as primeiras vítimas das bandeiras. Segundo o historiador paraguaio Bartolomeu Meliá, eram mais de 800 000 em 1600. Hoje são 30000 em todo o país.
Caiapó
Antigos habitantes do Tocantins, emigraram para o Pará e Mato Grosso. Só fariam contato pacífico com os brancos a partir de 1950. São 4 000 indivíduos hoje.
Xavante
Originalmente parte do grupo akwe, fugiram de Goiás para o Araguaia e depois para o Mato Grosso, onde estão até hoje. São 7 100.
Guaicuru
Terror da região do Pantanal e Chaco paraguaio de 1720 a 1780, fizeram acordos de paz com os portugueses e os espanhóis. Hoje há 1 200 deles, que se chamam kadiwéus e moram no Mato Grosso do Sul.
Holocausto brasileiro
O Brasil é uma invenção recente. Quando Cabral chegou, havia inúmeras nações indígenas, divididas entre si em pequenas tribos, que viviam em guerra umas com as outras. A conquista se fez aos pedacinhos. Para transformar tanta terra em um país só, foi feita uma vasta limpeza étnica. Estima-se que em 1500 havia 5 milhões de índios no Brasil. Hoje eles são 300 000 (0,2% da população) e ocupam 12% do território brasileiro. O lingüista Aryon Dall’Igna Rodrigues, da Universidade de Brasília, calcula que existiam 1 200 línguas. Hoje há 180. No Centro-Sul e Nordeste do país, o genocídio foi executado, na maior parte, pelos bandeirantes. Eles extingiram vários grupos, como os goyás, os janduins, os guarulhos, os araés, os guaranis-itatim e outros cujo nome nem se sabe. Mas sua intervenção nem sempre era direta. Como num jogo de bilhar, os grupos que fugiam dos ataques paulistas invadiam as terras dos outros, iniciando novos ataques e revides sangrentos. Ao migrar, forçavam outros grupos a se deslocar, até novo território. Foi o caso dos akwes, de Goiás, que a partir de 1720 se dividiram em dois. Parte deles fugiu para a região do Araguaia, território tradicional dos carajás. O conflito empurrou os migrantes mais para o oeste, até o atual cerrado mato-grossense, onde estão até hoje. São os atuais xavantes. Os que ficaram em Goiás hoje estão em Tocantins. São os xerentes.
Os bandeirantes souberam manipular os ódios intertribais. Poupavam tribos com as quais mantinham comércio, como os guaianás, e compravam escravos de outras, como os caiapós do sul. Estes últimos passaram de fornecedores a mercadoria, e fugiram de seu antigo território, a região do Triângulo Mineiro. Foram parar no norte de Mato Grosso, onde só seriam encontrados de novo em 1967. Descobriu-se, só então, que a tribo se autodenominava panará.
Ocas de branco
Quem vê um bandeirante numa pintura oficial imagina que eles moravam em vastas casas senhoriais. Nada disso. As residências paulistas eram verdadeiras ocas com paredes de taipa. “Havia uma mistura das influências européia e indígena”, disse à SUPER a arqueóloga Margarida Andreatta, da Universidade de Mogi das Cruzes. Escavando uma casa de 1650 no hoje movimentado bairro do Tatuapé (“caminho do tatu”, em tupi), na zona leste da capital paulista, Andreatta descobriu fragmentos de cerâmica indígena misturados à louça portuguesa. Achou também um polvarinho, um recipiente de madeira usado para guardar pólvora. Como as malocas familiares tupis, as casas tinham redes espalhadas por todos os cantos. Também foi encontrado carvão de vários restos de fogueira, o que sugere que cada habitante tinha um fogo-de-chão ao lado da rede, para cozinhar e se aquecer nos dias frios.
Texto de André Toral e Giuliana Bastos publicado na revista "Super Interessante" edição 151 de abril de 2000. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa