Por Rômulo Carleial
Era uma vez, uma ilha muito e muito distante. Bom não tão distante na verdade, uma vez que estou me referindo à América do Sul ( se você não sabia que a A. do Sul é o seu continente, sugiro que feche este site, incinere seu computador e vá ler uma enciclopédia ).
Brincadeiras à parte, este texto tentará contar uma história. Só que diferentemente de Rapunzel e outros contos da Disney, a nossa aconteceu à aproximadamente 65 milhões de anos atrás (m.a.a) e os personagens principais são os mamíferos.
Atualmente o nosso continente é um dos mais ricos em diversidade destes animais mas a maioria de nós não faz a menor idéia da procedência dos diversos grupos. Estamos tão acostumados com nossos felídeos e canídeos, por exemplo, que poderíamos dizer que eles estão por aí a um tempo bastante longo. Essa história pretende desmentir alguns dados e acrescentar outros.
Primeiramente acho justo relembrarmos que nossos personagens surgiram no final do Triássico à aproximadamente 220 m.a.a, derivados de linhagens de répteis sinápsidos e eram conteporâneos dos saudosos dinossauros. Talvez pelo amplo sucesso deste último grupo e à ocupação ampla de nichos, nossos mamíferos eram, em sua maioria, de tamanho reduzido, noturnos e esquivos. Agora, devidamente situados sobre nosso grupo de análise, podemos continuar nossa narrativa histórica.
“Oprimidos” pela diversificação dos Dinossauria e outros répteis, os mamíferos diversificaram muito pouco nos 140m.a.a que se passaram até a extinção daqueles grupos à aproximadamente 65 m.a.a. Este texto não tem como objetivo revisar todos os capítulos da evolução dos mamíferos e muito menos todos os grupos viventes. Estamos interessados nos “latinos” ou seja, aqueles que habitavam o nosso continente.
Mais uma vez sou obrigado a lembrar os leitores que os continentes não eram exatamente iguais ao que temos hoje. No período do surgimento dos mamíferos e dinossauros, existia um super continente chamado Pangéia [Fig.1], que posteriormente se dividiu em duas grandes massas de terra ( Laurásia e Gondwana ) [Fig.2]. Este dado é importante porque muitos grupos foram isolados uns dos outros por milhões de anos, cada um em um continente, gerando linhagens completamente diferentes. À seguir, vou disponibilizar mapas da Terra, do Triássico até o Eoceno, e gostaria que o leitor sempre voltasse à eles para se situar na nossa narrativa:
( tatus, tamanduás e preguiças atuais )
Fig 1 – Triássico Médio ( 220 m.a.a ) – A terra era constituída por apenas um super continente, a Pangéia.
Fig.2 – Jurássico superior ( 150 m.a.a ) – Dois super continentes são agora visíveis: Laurásia, ao norte e Gondwana, ao sul.
Fig.3 – Cretácio médio ( 105 m.a.a ) – América do Sul ( nossa área de interesse ) se separa da África, mas ainda estava conectada à Antártica e Austrália.
Fig.4 – Cretácio superior ( 65 m.a.a ) – A América do Sul agora é constituída por duas províncias e deixa de se conectar à Austrália, mas não à Antártica.
Fig.5 – Eoceno superior ( 35 m.a.a ) – A América do Sul deixa de se conectar à Antártica e fica completamente isolada.
A nossa história começa no final do Cretáceo, quando a A. do Sul ainda se conectava à Antártica e Austrália, e seus habitantes eram constituídos de mamíferos de origem Gondwânica ( e outros clados é claro ). Sabemos disso porque nos últimos milhões de anos, o sul e o norte do globo estavam separados nos dois super continentes e as linhagens de mamíferos diversificaram de maneira diferente em ambos os hemisférios.
Neste cenário citado acima, a A. do Sul era dividida em duas províncias distintas: nord-gondwanienne e sud-gondwanienne ( não encontrei nenhuma tradução ), e nelas habitavam os mamíferos não – Therios ( aqueles que não são marsupiais nem placentários, embora dois grupos Therios citados mais abaixo ainda permanecem com sua origem duvidosa) como, por exemplo, a espécie Gondwanatherium patagonicum [Fig.6].
Fig.6
Porém, estes animais tem papel secundário em nossa história, pois os grupos atuais de mamíferos sul americanos são provavelmente derivados de animais de origem da Laurásia, exceto talvez os Xenarthra ( tatus, tamanduás e preguiças atuais ) que não tem sua filogenia bem definida, já que os fósseis são raros e ausentes no Cretáceo. Seguindo esta linha de racíocinio, os primeiros fósseis de Therios encontrados da A. do Sul, datam do Cretáceo superior e representam a primeira incursão de mamíferos da Laurásia a chegarem no nosso continente. Estes grupos eram os ancestrais dos atuais marsupiais e clados como Condylartha (ungulado). Após chegarem no nosso continente, um grupo específico de marsupiais, ancestrais dos atuais Microbiotheria, colonizaram a Austrália passando pela Antártica, dando origem aos marsupiais que hoje lá habitam ( embora ainda não esteja claro que os Microbiotheria sejam de origem norte-americana ou se eram habitantes sul americanos). E neste mesmo período, o primeiro mamífero de origem australiana (não-Therio) foi encontrado na america do sul, pertencente ao grupo hoje representado pelos ornitorrincos. [Fig.7].
Fig.7 – A figura mostra a dispersão dos ancestrais do grupos em destaque ( círculos negros ), entre 85 e 65 m.a.a. O círculo cinza, representa um grupo de mamíferos de origem Gondwânica que persistia nesse período, representado pela espécie Sudamerica ameguinoi. Como evidenciado, os ancestrais dos Microbiotheria colonizaram a Austrália, dando origem a grupos como os Thylacinideos atuais. Neste mesmo período, a A. do sul recebeu o primeiro imigrante australiano, o o monotremata Monotrematum sudamericanum.
À partir desse período, principalmente após a extinção dos dinossauros e outros répteis no fim do Cretáceo ( 65 m.a.a ), os mamíferos começaram a se diversificar de maneira acelerada. Na A. do Sul, no início do Paleoceno até o Eoceno ( 65 – 34 m.a.a ) basicamente se encontravam grupos que G. Simpson ( paleontólogo americano ) chamava de, “três estoques genéticos distintos” : Marsupialia, Xenarthra e os Ungulados. Muitos grupos evoluiram se tornando endêmicos deste continente, principalmente os Ungulados ( grupo artificial ) constituído por diferentes ordens como Astrapotheria, Pyrotheria, Notoungulata e Litopterna [Fig.8]. A situação filogenética desses grupos é extremamente confusa e enigmática, sendo provavelmente clados derivados de ungulados Therios norte americanos, como os Condylathra. Todos se encontram extintos atualmente.
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Posteriormente na passagem do Eoceno para o Oligoceno ( ~ 34 m.a.a ) ocorreram dois eventos importantes para nossa história:
(1) – Devido a mudanças climáticas e ambientais, relacionadas à uma série de fenômenos geotectônicos ( como a separação da A. do Sul e Antártica, gerando mudança nas correntes oceânicas, por exemplo ) observou-se uma grande mudança no aparelho mastigatório dos grupos herbívoros citados acima. As linhagens anteriores eram praticamente consituídas por animais Braquiodontes ( coroa dentária baixa ) e foram substituídas por linhagens derivadas de animais Hipsodontes (coroa dentária alta ). Isso se deve ao fato, que os dentes hipsodontes são mais resistente à desgaste, e foram selecionados uma vez que o ambiente neste período mudou drasticamente: muitas florestas tropicais, que não toleram climas muito frios, foram substituídas por savanas. Estas são constituídas praticamente por gramíneas, muito abrasivas aos dentes, tanto pela sua constituição intrinsíca, como pelo fato de acumularem partículas de poeira e sedimentos.
(2) – São encontrados os primeiros fósseis de ancestrais dos Primatas Platyrrhini ( macacos do novo mundo ) e Roedores caviomorfos ( capivaras e cutias atuais ). A explicação mais aceita atualmente é que estes grupos vieram da África, embora a distância entre os dois continentes fosse de 1400km na época. Outras rotas mais plausíveis foram sugeridas, mas através de anatomia comparada, ficou claro que os animais da América do Sul são mais similares filogeneticamente aos clados africanos. A maneira de como estes se dispersaram ainda é um mistério.[Fig.9].
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Após a separação da Antártica e América do Sul, na passagem do Eoceno para o Oligoceno, temos o período que é considerado o mais autoctóno do nosso continente, uma vez que se encontrava completamente isolado, como uma ilha. Como sabemos que ilhas são sujeitas a uma grande taxa de divergência e endemismo ( ler o texto do Rafael sobre o dodô ), diversos grupos se derivaram nessa época como o marsupial Groeberrid, os xenarthros Dasypodidae ( grupo que ainda existe atualmente ), diversos notoungulados e muitos outros[Fig.10]. Além disso, diversos grupos de animais alcancaram tamanhos impressionantes como as preguiças gigantes Megatherium ( 5m de altura ) e alguns roedores que ultrapassavam os 500kg. Este conjunto de animais são chamados hoje de “Megafauna”, e alguns sobreviveram até o final do Pleistoceno ( 10.000 anos atrás).
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Antes que cheguemos em um dos mais curiosos aspectos de nossa história, o grande intercâmbio americano (GIA), é preciso relembrar que após as primeiras incursões de mamíferos Therios no final do cretáceo, nosso continente não mais teve acesso aos animais norte americanos e vice versa. Porém, embora o istmo do panamá ainda não estivesse ligando os dois continentes no Mioceno ( 23 – 5 maa ), são encontrados fósseis do grupo dos Procyonidae ( quatis e mão-peladas atuais) e um registro de mastodontes na A. do Sul. E paralelamente, fósseis de Xenarthra ( principalmente preguiças gigantes) e roedores Dynomideos são encontrados no Caribe e outras ilhas. Estas ocorrências e algumas evidências geológicas, sugerem que antes da completa formação do istmo do panamá e do GIA ( ~ 4 m.a.a ) o nível do mar diminuiu gerando uma ponte temporária entre os dois continentes o que justificaria a presença destes grupos fora do seu local de origem. Isso é praticamente certo para os Mastodontes, embora talvez os demais grupos tenham migrado pelo mar, como “island hoppers”.
Como vimos, durante grande parte do tempo que nosso continente existiu, ele era constituído por apenas marsupiais, ungulados e xenarthros. Posteriormente, primatas e roedores caviomorfos chegaram da África pelo mar e Procyonideos e um grupo de mastodontes ( com fósseis encontrados na região amazônica ) chegaram “por acaso” da américa do norte. Assim sendo, até o meio do Plioceno ( ~ 4 m.a.a ), diversos grupos tão familiares de nossa fauna, como os canídeos, felídeos, artiodáctilos dentre outros, não ocorriam na A. do Sul. De onde eles vieram?
A reposta encontra-se no já citado istmo do panamá, que passou a ligar, definitivamente, a A. do Norte e Sul aproximadamente a 4 m.a.a e caracterizou o evento conhecido como GAI. Diversos grupos de mamíferos migraram de um continente para o outro, embora aqueles provenientes da A. do Norte tenham sido mais diversos ( estes grupos estão evidenciados na Fig.11 ). Obviamente nem todos os grupos migraram simultaneamente, tendo essa diversificação ocorrido desde a formação do istmo até o final do Pleistoceno 10 mil anos atrás.
Vale ressaltar, que alguns autores atribuem a grande quantidade de extinções de mamíferos endêmicos da A. do Sul no Pleistoceno, por competição com os recém chegados mamíferos norte americanos. Embora tenha havido uma queda dos gêneros nativos durante o intercâmbio [Fig.11], é sabido que diversas linhagens já se encontravam extintas ou em processo de extinção, devido à diversas mudanças climáticas e bióticas gerada por diferentes fatores, desde a elevação da cadeia dos Andes até as glaciações que modificaram a altura do nível do mar. Uma evidência que sugere que as extinções ocorridas aqui não foram um episódio local, é que no final do Pleistoceno, toda a Megafauna [ mamíferos com mais de 1tonelada ( disponibilizei imagens de alguns deles ao final do texto, para os curiosos) ] americana e em diversos lugares do globo foram extintas. Até mesmo alguns grupos invasores do norte acabaram por se extinguir durante o Pleistoceno – Holoceno como os mastodontes, tigres dente de sabre, equinos e diversos ursídeos.
A teoria mais aceita dessa extinção global é o que chamamos de zigue – zague interrompido. Quando ocorrem glaciações ( e elas foram muitas no Pleistoceno ), diversos fatores, como a queda da temperatura, influenciam a vegetação nativa. Como ja foi dito anteriormente, florestas tropicais se retraem com a queda da temperatura, e o contrário ocorre com ambientes mais secos como desertos e savanas. As faunas de hábitat florestal então, se reduzem a números muito baixos durante glaciacões ( por perda de hábitat, competição etc ) enquanto que as de savana proliferam. Porém, ao final da glaciação a elevação da temperatura e outros fatores, geram o efeito contrário: florestas expandem e savanas retraem o mesmo ocorrendo com a fauna. Este efeito é o chamado “zigue – zague”. Porém, algum fator deve ter “interrompido” esse efeito, gerando o “zigue- zague interrompido”: faunas que se encontravam reduzidas devido ao encolhimento do hábitat, sofreram alguma pressão e não conseguiram se recuperar no intervalo do evento. Não se sabe ao certo que afetou as populações fragilizadas, embora o homem seja apontado como um dos responsáveis ( esse dado ainda é muito questionável ).Ainda assim, dos “antigos habitantes” sul americanos nos restaram apenas os marsupiais e xenarthras e todo o resto são constituidos por clados provenientes da América do Norte.
Como vimos, diversos grupos de animais tão familiares em nosso convívio estão aqui a muito pouco tempo, sendo as linhagens mais velhas praticamente ignoradas por nós ( quantos estão familiarizados com preguiças e tamanduás?). E com essa informação, concluo a curiosa história dos mamíferos sul – americanos e espero que a leitura, embora extensa, tenha elucidado aspectos de nossa fauna Mammalia atual.
Rômulo Carleial,
Laboratório de Paleozoologia – UFMG
Apêndice – Imagens de alguns grupos da Megafauna Pleistocênica Sul – Americana:
Um Gliptodonte, do grupo dos tatus atuais.
Megatherium, uma preguiça de 5 metros.
Um Toxodon, notoungulata de mais de 1ton.
Uma Macrauchenia, litopterna.
Cuvieronius humboldti, mastodonte de 7t.